quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Álbuns: Fresh Cream - Cream(1966)


A trajetória do Cream tem um que de irônico. Afinal, apesar ter como seus integrantes alguns dos músicos mais influentes e celebrados de seu tempo, não possui o mesmo reconhecimento de algumas outras bandas inglesas do período. Uma grande pena, porque a banda tem algo de tão especial e extraordinário que somente um seleto grupo de outras bandas possui.

E seus próprios integrantes sabiam disso, como se vê pelo próprio nome do conjunto: eles eram "A Nata", o crème de la crème, ou o cream of the crop em bom english, da cena do blues-rock inglês da época. E não podemos os acusar de presunção ou arrogância, afinal quantas bandas já puderam ter como integrantes o excelente cantor e baixista Jack Bruce, o intenso baterista Ginger Baker e DEUS na guitarra? Obviamente, "deus" é só um dos apelidinhos que o genial Eric Clapton recebeu por sua "pouca" habilidade com a sua Gibson.

Se o conceito de "supergrupo" teve um início, ele provavelmente se deu com o Cream: Baker e Clapton eram admiradores mútuos e o baterista - então na banda de blues The Graham Bond Organisation - perguntou se o guitarrista, integrante da banda  Jonh Mayall & The Bluesbreakers(ambas as bandas de muito sucesso dentro do cenário do blues inglês) gostaria de se juntar à ele em um novo grupo. Eric, ainda meio reticente com a ideia - era amigo de Jonh Mayall - disse que só aceitaria o convite se o baixista Jack Bruce, com quem já havia trabalhado brevemente nos Bluebrakers e no Powerhouse, se juntasse ao projeto. O que quase fez Ginger bater o carro que estava dirigindo enquanto conversava com o guitarrista, afinal, o escocês Bruce também já havia integrado a Graham Bond, e havia saído desta justamente por sérias desavenças e brigas com o baterista, em 1965. Os dois acabariam prometendo colocar suas desavenças de lado em prol da criação e continuidade da banda, o que não ocorreria por muito tempo e acabaria por causar a implosão do Cream alguns poucos anos à frente.

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Os Bluesbreakers e seu disco com Eric Clapton
O grupo - um dos primeiros power trios que se têm notícia, contrariando a tendência entre as bandas da época de ter em torno de 4 ou mais integrantes, como os Beatles, The Who ou os Rolling Stones - fez seu debute em um show no Sixth Annual Windsor Jazz and Blues Festival em 3 de julho de 1966. Onde tocaram alguns covers de blues americanos, pois ainda não possuíam músicas próprias. Após a boa recepção por parte do público, o grupo ficou de julho até outubro gravando no que seria seu disco de estréia, e o álbum resenhado do dia: Fresh Cream.

Com uma trinca de tamanha qualidade, não poderia sair coisa ruim e o disco de debute do Cream é um bom álbum, que demonstra bem a transformação do blues no rock como o conhecemos, com riffs elaborados - ainda bastante baseados no blues - lindas linhas de baixo de Jack e uma pesada bateria. Também se pode perceber uma semente do que mais tarde se tornaria o Hard Rock, e um flerte com o Rock psicodélico, que estouraria no ano seguinte tendo a própria banda como um dos principais expoentes do gênero.

Ao contrário do que se pode imaginar hoje em dia, o cérebro principal por trás da banda era Jack Bruce e não Eric Clapton. O baixista escreveu 4 das 11 músicas do álbum(uma delas em parceria com o poeta Pete Brown e outra em parceria com sua esposa, Janet Godfrey); Ginger Baker escreveu duas(uma delas também em parceria com a mulher de Bruce) e as outras 5 canções covers de alguns blues famosos.

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Jack Bruce, Ginger e Clapton: foi breve mas foi intenso
A mão de Bruce se vê logo na primeira(e talvez a mais famosa) faixa do disco: I Feel Free. Começando com uma introdução a capela repetindo "I feel free" marcando o tempo com as palmas de Clapton e as baquetas de Ginger Baker, enquanto Bruce grunhe a melodia da música.Com um primeiro verso suavemente cantado por Jack Bruce acompanhado agora pelos riffs de Eric e marcação intensa da bateria.  Para logo em seguida  Bruce proclamar à Deus e o mundo que pode "andar pelas estradas e não tem ninguém lá". Uma verdadeira expressão do sentimento de liberdade.

A segunda faixa, também de autoria de Bruce é N.S.U. Uma canção sobre um músico rico, cheio das futilidades que o dinheiro pode comprar mas frustado por não ser feliz, tenta preencher esse vazio viajando para todos os lados e seu único momento de felicidade é quando toca sua guitarra. A música possui um bumbo vigoroso na introdução e gritos de desespero do vocalista entre um verso e outro.

Sleepy Time Time é um blues composto por Jack em parceria com sua esposa, Janet Godfrey. É aparentemente uma música sobre uma pessoa não muito afeita ao trabalho e que quer apenas relaxar. Eric Clapton está especialmente maravilhoso nessa música, fazendo como ninguém deliciosos riffs bluesísticos na guitarra e com um solo espetacular.

Dreaming é mais uma canção de Jack Bruce, dessa vez sobre sonhar com um amor que irá mudar toda a sua vida, mas que nunca chega. Sweet Wine é uma parceria curiosa entre o amor do baixista - Janet, sua esposa - e seu desafeto - Ginger Baker. Um som sobre as vantagens da vida calma no campo ao dia a dia frenético das grandes cidades.

A primeira música do disco que não pertence à alguém da banda vem na quinta faixa, a primeira do lado B: um cover de Spoonful, blues de Willie Dixon mas gravado primeiramente por Howlin Wolf. A colherada - spoonful em inglês - pode ser entendido como uma analogia ao homem se alimentando de coisas ruins do mundo ou até mesmo uma referência ao uso de heroína(a droga já chegou a ser consumida se utilizando de colheres ao invés de seringas). Curiosamente essa é a droga que Clapton chegou a estar pesadamente viciado durante um período conturbado de sua vida, o guitarrista chegava a sair com uma colher dourada presa ao pescoço para o consumo da droga onde quer que fosse.

Em algumas versões ao vivo a canção chegava a ser estendida à mais de 15 minutos de duração, numa das famosas jams que o Cream fazia nos seus concertos ao vivo e que, inclusive, uma dessas versões estaria no terceiro disco da banda, Wheels of Fire. Mas isso é papo pra outro dia...

Continuando, a próxima faixa do álbum também seria um cover, dessa vez da instrumental  Cat's Squirrel, de Doctor Ross, que teve arranjos acrescentados por parte da banda e conta com uma única parte cantada com um "all right, all right, all right" de Jack Bruce no meio dessa.

A única música cantada - como voz principal - por Clapton é Four Until Late, (mais) um cover do folk de Robert Johnson. Sim, esse mesmo Robert Johnson que teria vendido a alma para o Diabo e que foi o cantor a ter iniciado o macabro clube dos músicos mortos aos 27 anos. A dançante Rollin' and Tumblin' é outro cover de blues, dessa vez de McKinley Morganfield, uma engraçada música sobre uma pessoa que passou a noite na bebedeira, e está atrasado para pegar o trem e voltar pra casa.

A penúltima faixa é de novo um cover, dessa vez de Skip James, I'm So Glad. A música fala sobre o eu lírico, após estar cansado de tanto sofrer por uma pessoa, romper com ela e estar tão feliz que mal sabe o que fazer. O álbum fecha com uma composição de Ginger Baker: a instrumental Toad, que conta com o - muito provável - primeiro solo de bateria em um álbum de rock na história. Com certeza uma inspiração para John Bonham na sua Moby Dick.

Mesmo não tendo ainda muitas canções próprias, o Cream começava bem a construir sua reputação como uma das melhores bandas de rock do mundo com Fresh Cream. Mas iria gravar de vez seu nome na história no seu próximo álbum, o psicodélico Disraeli Gears, o próximo disco a ser resenhado aqui no blog. Até a próxima!

De bônus, se divirta com o hilário videoclipe do single do disco, "I Feel Free": 

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